sábado, 29 de julho de 2006

O Crepúsculo

O céu escala de joelhos o espesso ébano do universo e, orando,
Com as palmas unidas erguidas ao nunca, suplica pela redenção dos pássaros,
Que devido ao desmazelo implacável da natureza andam a voar perdidos e esparsos,
Dissimulados dos estímulos primários que os inspiravam os prateados cantos.

Uma cólera inflamada espalha-se pelo amplo côncavo do céu,
Tornando turvo seu semblante até então imperturbavelmente anil
E dissuadindo-o com isto a manter-se submisso frente aos constantes descasos que testemunhara,
Posto que seus poderes, entre os supostos poderes existentes na terra,
Equiparam-se somente aos dos oceanos e das rosas.

Um dilúvio esfacelado despenca de nuvens sonâmbulas com ímpetos apaixonados
E o ribombar imperativo e ao mesmo tempo exausto do firmamento
Reverbera entre as civilizações em torrentes trágicas,
Afogando políticas ressacadas por outonos áridos e culturas apodrecidas por dogmas decadentes.

Sereias dedilham nas afiadas cordas vocais, faixas alternadas de silêncio, contentamento e pranto,
Tornando-se porta-vozes involuntárias de todas as mulheres que tiveram os corações congelados
Pela intensidade com que se curvaram à brutalidade dos seus homens
E pelo prazer que sentiram em sentirem-se mortas;
Suas mãos ansiosas simulam sufocamentos lentos brotando espinhos no corpo róseo das virgens
E fendas incandescentes nas suas retinas, tornando-as como que uma representação física,
- E onírica -, do abandono.

Turbilhões de gritos rubros relampejam eriçados, campeando grutas e vales,
Tão escandalosos quanto milagres.
Nos imensos cemitérios, construídos a céu aberto na pupila dos homens,
Túmulos em mármore e ruínas debatem-se e cadáveres esquálidos se esperneiam desvairados
Numa ânsia inadiável de ressurreição e recuperação de tudo o que de si fora transferido
Aos seus respectivos, ou supostos, sucessores: apartamentos, louçaria, chuvas, noites, eternidade...,
Para que assim fiquem abraçados pra sempre aos seus escombros
E não venham a correr o risco de se verem apagados da memória da criação...

E quando um caos supremo se instalara no ventre das viúvas;
Quando duendes e fadas se distraíram deixando à mostra suas faces hediondas;
E a íris do futuro, tal uma medalha incendiada,
Começou a afogar-se na goela desesperada do horizonte;
E um espanto herético arregalou-se na superfície matizada de suor do caboclo;
E a forma das cores começou a desocupar os espaços
Espargindo suas essências por esgotos caudalosos e melodias pútridas;
Quando as pétalas começaram a despir as flores dos jardins,
Esvoaçando atormentadas feito asas órfãs;
E as colinas tostaram suas cabeças infantis desorientando o vôo das borboletas;
E um milhão de maestros emergiram do seio dos mares cada qual regendo uma orquestra
própria;
Quando a insônia escorreu dos olhos dos poetas
E eles viram-se perfilados num mesmo conceito de solidão e inércia;
E uma menina soltou as mãos das de seu pai,
Jogando-se ao vento e desaparecendo no ar com um sorriso desmaiado nos lábios;

Então a natureza entendeu que havia sido descoberta.
Que suas ardilosas artimanhas não serviam mais de consolo às estrelas
E que nem o luar mais cristalino seria capaz de resgatar da fúria dos céus
Uma mínima simpatia de noiva.
A eternidade terrena agonizava
Dando espaço a um sono infinitamente mais pesado, profundo, negro e vazio.

terça-feira, 25 de julho de 2006

O Velho

Esses dias eu vi o pedaço de algo que já nasceu,
brincou
e que já teve esperanças e sonhos:
Um velho.

Já o haviam tido por gente nalgum ontem desses,
quando ainda corria o risco de ganhar algum dinheiro.
Hoje ninguém perde tempo com ele.
Caminhava apoiando-se nas paredes,
firmando no chão somente o pé que ainda tinha bom,
pois o outro se desmanchava.
Não tinha uma muleta.

Andava tão devagar que parecia que sempre admirava algo.
Mas apenas andava.

Quando chegou perto de onde eu estava, sentou-se.
Perguntei o que tinha no pé e ele mostrou.
Disse que o havia quebrado faziam doze anos e nunca mais havia sarado.
Aquilo era um inchaço preto,
um pedaço podre grudado num corpo que se dissolvia.

As palmas das mãos trêmulas do velho eram pretas também,
como se tivessem fungos.

Ele disse que tinha raiva quando o cigarro acabava de noite
e não tinha dinheiro pra comprar mais.
O som de sua voz me impressionou tanto quanto saber que ainda tinha raiva de algo
(não parecia mais haver sentimento algum dentro daqueles olhos).

Era um som de treva e sono,
um lamento, um protesto,
um gemido.
Um canto santo de sino enferrujado,
um silêncio.
Acontecia torto, áspero, seco, pálido!
como algo que já se foi
e que se foi doente.

Aquele som talvez refletisse a maneira como o velho havia sido tratado
quando ainda tinha sonhos.
Fiquei com vergonha de pensar que ainda sonhava.
O velho percebeu isto.

Ele disse que fazia frio.

Eu não tinha, ali, nada que oferecer para aquecê-lo,
nem um sorriso.
E me calei.

Ele então foi embora,
arrastando-se consigo
como uma cruz,
caminhando sem o pé
que ainda estava ali
pra doer.
Como sua vida
que também doía
sem estar ali.

sábado, 22 de julho de 2006

Ensaio Sobre a Solidão

escrito por volta de agosto de 2004 - hj ñ penso mto assim


Somos seres humanos, o que implica afirmar não sermos nem santos nem demônios, mas talvez o intermédio entre um e outro, ou ainda a soma de ambos.

Já vi comportamentos humanos manifestarem as mais soberbas vocações, vi as mais dignas intenções brotarem no seio das mais humildes almas e vi tudo isso nos mais miseráveis recantos, não precisando, porém, circular pelos salões de qualquer palácio para saber que espécie de pensamentos sombrios transitam por seus interiores. O fato é que somos seres humanos e ainda que vez por outra alguns episódios nos comovam, fazendo com que nos levantemos em solenes coreografias - dedo em riste -, reivindicando reparação para danos que não nos dizem respeito, o que buscamos mesmo é a solução para os nossos próprios dramas. Nossas intenções são traçadas a partir de interesses individuais e não em favor dos anseios alheios ou coletivos - motivos a que categoricamente aludimos e nos quais, muitas vezes, convictamente cremos. Apesar de isto não ser muito estimulante, pois aparentemente nos aproxima mais do inferno que do paraíso, não é tão cruel assim, já que alguém que porventura viesse a abrir mão de si mesmo e de seus interesses vulgares, em nome de causas as quais, entre aspas, acredita, acabaria sim, neste desapego, desapegando-se de todos os demais, tornando-se assim incapaz de alterar o que quer que fosse em seu meio. Porém, este egoísmo inato da espécie humana, somado a outros adendos, muitos deles fabricados por multinacionais, acaba por provocar nas sociedades toda casta de cisões. Cisões do eu para comigo próprio, do eu para com meus pais, irmãos, para com meus familiares, vizinhos. E dos meus vizinhos o ciclo se estende. Um bairro não quer se ver prejudicado com relação ao outro, inda que isto seja comum. Dos bairros parte-se para os municípios, os estados, as regiões, os países, os continentes e, finalmente, os hemisférios. Solteiros, casados, feios, bonitos, negros, brancos, gordos, magros, intelectuais, ignorantes, espertos, otários, jovens, velhos, doutores, operários, roqueiros, sambistas, católicos, batistas, ateus, homossexuais, heterossexuais, homens, mulheres, enfim. Guerras, múltiplas guerras travadas em sua maioria nas mais ocultas arenas, nos bastidores da convivência. Guerras indeclaradas, ainda que nos inspirem amplos e efusivos debates.

Mas a maior de todas as guerras, evidentemente, é a guerra social. Opressores e oprimidos! Esta é a maior das cisões mundiais e se não é a que inspira e desencadeia todas as demais divergências, é ao menos a que mais as estimula. É a linha horizontal que divide os povos não por fronteiras idiomáticas ou territoriais, mas sim por limitações de posse; definindo os que estão por cima e os que encontram-se por baixo na escala material. É o alimento que predispõe duas frentes, entre milhares de outras, a se digladiarem ferrenhamente, como animais peçonhentos que disputam o cadáver de um corpo que apodrece.

Enquanto esta questão, a da corrosão social, não for devidamente digerida como sendo uma guerra e não ter a dedicação que carece com relação aos governantes das principais nações, pertençam os mesmos a esfera que pertencerem, ainda que sejam resolvidos outros impasses pertinentes ao melhor convívio humano, os conflitos permanecerão no mesmo degrau, no mesmo grau de intensidade, os anseios permanecerão intactos. Principalmente o mais legítimo dos anseios imagináveis, o da liberdade.

Não venho através deste texto propor alguma saída, até porque não acredito que haja uma, principalmente pelo fato de não haver na humanidade matéria-prima suficiente para que se promova uma reversão do atual quadro de desigualdade entre os povos, para um cenário emoldurado por ambientes mais alentadores. Tão pouco pode-se importar essa matéria-prima. Não há e nem acredito que um dia haja essa mão-de-obra. Não acredito na igualdade e acho-a sem graça e sem fundamento, pra não dizer grosseira, dada a heterogeneidade inerente aos seres humanos e até a própria natureza. A mim não ocorre nenhuma proposta a fim de que se possa dissolver, estancar ou apaziguar as tantas e tamanhas aflições que nos perseguem ao longo da vida e não creio que a questão social venha algum dia a se ver em patamares menos hediondos, ou mais sóbrios.

Pode-se falar em revolução, o que seria muito poético de se imaginar, porém, é impossível dar-se curso uma revolução digna de efeitos felizes sem que para tanto o povo não esteja imbuído de modo uniforme neste intuito. E isto só seria possível por meio de um recurso indispensável, que é a educação. Mas não esta educação tecnicista e conceitual, que nos põe em salas de aula e que serve-se do sistema unicamente para sustentá-lo no governo dos nossos destinos, mas sim de um amplo estudo envolvendo basicamente o conhecimento do passado, o conhecimento criacional e incentivando o aprimoramento da criatividade humana através da arte. Para que assim pudéssemos desenvolver nossas sensibilidades de modo a despertarmos para valores que há muito permanecem adormecidos. Não acredito que isto venha a ocorrer. Contudo, não é por isto que aceito como suportável o modo perverso como estão encadeadas e estabelecidas as situações atuais, que são, sob todos os prismas, irracionais. Apenas saliento algo que considero óbvio, ou seja, que a erosão social tal como se encontra é o desastre que predispõe as sociedades aos maiores conflitos, por conseguinte às maiores tragédias e que os problemas mundiais não serão sequer tangidos caso a questão da pobreza não seja abordada como o grande tumor humano e não torne-se centro de discussões e alvo de combate entre todas as nações. Mas, repito, não creio que a vaidade e o egoísmo imperantes permitirão que seja travado este combate, acredito, aliás, que esse dilema seria, caso fosse possível dissolver os demais, o último dos enfrentamentos humanos.

Pode ser também que estes meus apontamentos estejam tão distantes do cerne das aflições humanas, quanto distantes são nossas compreensões acerca do que se passa quando nossas almas despem-se dos nossos malfadados corpos.

Contudo, o que menos compreendo, aliás, o que não compreendo, é o fato de as grandes fortunas mundiais estarem diretamente vinculadas a descoesão social. É ridículo deduzir que para que alguns poucos tenham uma vida de reis, com direito a suntuosos impérios, a maioria tenha de se ver obrigada a chafurdar nos esgotos, como porcos. Não consigo compreender porque, nem como, essa miséria toda seja responsável pela geração fortunas imensuráveis, que se amontoam nas mãos de tão poucos privilegiados. Não compreendo porque neste momento existem somas inconcebíveis acumuladas em caixas fortes, e que ali haverão de permanecer por gerações, sem o real aproveitamento de ninguém durante séculos, apenas para garantirem a consolidação e a permanência de dinastias econômicas que usam de sua influencia para apossarem-se do poder e boicotar qualquer manifestação oposta aos seus princípios e ditar as regras com relação aos corretos comportamentos a serem adotados por aqueles que jamais passarão de espectadores da vida. E no mesmo instante em que estas somas dormitam sobre o lustre sombrio dos caixas-fortes, milhares de homens transitam pelas ruas sem nenhuma chance de conquistarem sequer o mínimo para uma existência decente.

Não compreendo como e porque uma pessoa é dona de milhares de hectares de terra enquanto outras, no planeta terra, não tenham direito a um buraco onde possam passar a noite. Não entendo porque uma melhor adequação das finanças, com relação a garantir ao menos um piso menos vergonhoso aos desfavorecidos, venha a por em risco as bases econômicas mundiais.

A meu ver a miséria, construída pelas garras do capitalismo, que perverte mesmo nossas referencias mais tímidas com respeito a civilidade, constrói uma miséria abstrata muito maior e que, por ser abstrata, é muito mais complexa e aterradora, muito mais difícil de ser detectada e combatida, tornando-se, portanto, um cancro que atinge e aflige surdamente a todos os seres, não importando seu status no conceito social, nem qualquer outra diferença entre as tantas diferenças existentes entre nós. Esta que é a cisão da alma para com o corpo; a solidão. Solidão no aspecto múltiplo de suas possibilidades; solidão do amor, solidão do sexo, solidão do filho, solidão da família, já que nossos valores cada vez mais vêem-se confundidos aos nossos vícios; solidão de carne, do coração, da alma. Não há mais convivência entre as comunidades, se é que um dia isto ocorreu. Não há integração entre os povos! Todas as esferas sociais vêem-se acometidas por alguma perturbação oriunda do fato de não haver entre elas possibilidades de harmonia. Estamos apenas suportando-nos uns aos outros ao mesmo tempo em que nos desprezamos a todos. Nos agarramos à religião e à televisão como doentes abraçam-se aos remédios. Fazemos de Deus, não a libertação que sua imagem representa, mas um cárcere amaldiçoado repleto de punições. E da televisão, esta indústria da barbárie, fazemos um outro Deus, a quem devemos total subserviência uma vez que a todo momento nos esclarece a respeito de elementos indispensáveis a melhor condução de nossas vidas. Estamos nos fragmentando cada dia mais em bolhas de desespero. Tudo o que pronunciamos é produto de alguma mesquinharia, portanto dito em nome de uma farsa. Quando digo tudo, é claro que admito haverem manifestações contrárias, porém tão tímidas se mostram, que não ultrapassam sequer a qualidade do medíocre, uma vez postas ao lado do voraz apetite e do veloz avanço do pensamento financeiro, sendo portanto absolutamente ineficazes e irrelevantes.

O gosto da maioria das pessoas é ditado por dispositivos de marketing tipo outdoor´s e por outros mecanismos que se manifestam das mais diversas maneiras; ora à socapa, induzidos por meio de embustes da propaganda, ora socados garganta abaixo como se não fosse possível sobreviver sem determinado produto ou objeto. As pessoas que têm o gosto diferenciado vêem-se engessadas por várias formas de exclusão e acabam por acharem-se donas de um refinamento superior, refinamento este que as torna criaturas dignas e perspicazes. E o que se observa é a formação de diversos blocos, blocos que inda que devido a conjuntura tenham diversos aspectos positivos, vêm, em nome da união, somar ainda mais cisões sobre todas as demais já existentes. Quem está fora desses blocos, ou excluído dos grupos que se beneficiam deles, fica absolutamente desassistido. É a oficialização da barganha, no mais vergonhoso aspecto que a expressão admite. Daí a todos os nortes convergirem para o desequilíbrio. Disso mina uma carência que não tem remédio, uma tristeza produzida da ausência afetiva entre os seres, somada ao pólo central do homem que é o individualismo, já que cada um de nós vive em um planeta surpreendentemente diferente. Dessa mescla obscura redunda uma ironia, que é o fato de nosso individualismo estar diretamente atrelado ao coletivismo, sendo, portanto correlato aos nossos desejos mais egoístas uma melhor adequação social entre todas as esferas da sociedade, para aí sim, haver mais possibilidades de trânsito entre os corredores sociais, resultando em estimas menos devastadas e mais espontaneidade de expressão entre interlocutores e espectadores. Creio que teríamos mais satisfação em viver se soubéssemos que para se aspirar a uma pasta mais concorrida de uma empresa, não se fizesse necessário nenhum grande crime, e que para se sentar em uma cadeira mais elevada, fosse qual fosse a instituição, não se fizesse necessário esmagar uma multidão de desgraçados que em nada tem a ver com nossos percursos, quando não, sequer imaginam que existamos.

Mas o que se vê não é senão o contrário, o esgarçamento do quadro social desola as cidades cada dia mais e as classes indigentes, jogadas nas ruas como trapos, rastejam completamente humilhadas e desamparadas e quando amparadas, feitas por um assistencialismo pobre, que não contribui em nada para o fim de suas lastimáveis situações, quando não até a fomenta a causa que lhes serve de estimulo - nada contra as pessoas solidárias, mas muito contra as instituições.

E uma vez atirados à imunda condição de pedintes, essas criaturas predispõem-se a qualquer coisa para garantir a mísera côdea de pão, sendo obrigados a circular de mãos estendidas pelas praças, feito bichos. Homens bêbados afundados no vício, sem motivos nem inspiração para alimentar qualquer esperança de reação na vida; crianças esquálidas, que sequer compreendem o que significa pertencer a infância e que desde que nascem não conhecem sequer um instante de sossego e se vão pelas ladeiras cheias de traumas e atribulações, lutar contra um inimigo invisível e covarde demais para lhes dar uma mínima oportunidade de projetarem-se; mulheres definhadas, afastadas dos encantos inerentes à delicadeza que suas condições sugerem, suplicando ao menos uma moeda, já que estão proibidas de sonhar sequer com um lar, quem dirá com uma família...

Enquanto senhores bem sucedidos desfilam em carros importados, olhando-as do alto de suas arrogâncias e mediocridades....

A classe operária, ou seja, a que pode se dar ao luxo de ser conhecida como pobre, sujeita-se a todo tipo de malabarismos e acrobacias, acata todas as ordens sem qualquer objeção, equilibrando-se na corda bamba do sistema, apinhando-se nas periferias, ou amontoando-se em cortiços, e pouco diferem-se da condição anterior, a dos miseráveis, já que a vida não circula pelos seus olhares opacos e, inda que sorriem, demonstram um imenso desgaste nos gestos e uma tristeza profunda nas palavras, uma vez que suas inconsciências registram toda crueldade de uma caminhada que jamais sairá de um estreito e tumultuado círculo. A todo momento algum episódio os ofende e os afirma não serem mais que derrotados. E se não objetam contra esta violência, é por não terem capacidade, ousadia ou perspicácia de desafiar os donos das cartas. Isto quando, na inocência de suas almas, não assimilam pensamentos produzidos pelo sistema para domesticá-los, ou melhor, mecanizá-los, e encontrarem-se rendidos pelo equívoco apregoado pelos canais de televisão, de que existem pessoas mais competentes e capazes de angariar finanças do que outras, através de métodos absolutamente legítimos, não cabendo aos demais qualquer tipo de objeção - o que constituiria cobiça -, tampouco invejarem as merecidas e suadas conquistas dos vitoriosos. Cabe apenas sujeitarem-se aos seus caprichos, como cães.

Sendo a humilhação o principal combustível da violência, dá pra se ter uma idéia do que esse massacre produz nos alicerces da sociedade.

A classe média, quando discorda do processo a que serve e do qual se serve, encontra-se em uma encruzilhada inextrincável, e ao mesmo tempo em que quer cuspir em todas as estúpidas convenções a que tem de se adaptar e prestar contas, precisa abanar o rabo para elas, quando não pô-los entre as pernas e obedecer rigidamente as suas arbitrariedades nebulosas. Não bastasse isso enfrentam jornadas de trabalho sobre-humanas, desenvolvendo individualmente funções que outrora requereriam mais outros dois pares de braços, e se não o fizerem são instantaneamente substituídos por outros, como se fossem meras e descartáveis peças, que, devido à demanda, não devem ser posta em grande valia e cujo menor sinal de “ferrugem” já é mais que argumento para justificar suas substituições. Suas famílias desmoronam-se em aparências e ainda assim agradecem aos céus pelo fato de não estarem pintados no ameaçador e desgraçado quadro dos necessitados. E finalmente, teremos a classe burguesa e a classe rica, que acabam transitando por existências obscuras e monótonas, quase que surreais, que os obriga a murarem-se, inoxidarem-se e blindarem-se para não se verem vítimas de eventuais embaraços. E ainda que se orgulhem de suas capacidades e seus privilégios em meio à absoluta miséria circunvagante, não podem explorá-la tal como suas possibilidades permitem ou insinuam, já que têm suas articulações enrijecidas, seus horizontes cerceados pela cinzenta e avermelhada massa da violência, que encharca todas as esferas das cidades. E por mais que usem de subterfúgios como a auto-afirmação para justificarem suas superioridades, não conseguem atingir senão uma alucinação confusa daquilo que lhes foi prometido como sendo a felicidade, de modo que nem eles sabem explicar quais são as reais benesses de se pertencer a estes restritos grupos dos quais fazem parte, que são como fantasmas que quase ninguém vê, e que por mais que se esforcem para o contrário não andam senão por estreitos corredores que a escravidão da posse os relega. Tanto é assim que os livros de auto-ajuda sempre estão entre os best-sellers nas livrarias. E pobres não compram livros.

Volto a afirmar que não tenho uma solução e sequer imagino uma proposta para que sejam resolvidos os grandes dilemas envolventes dos dramas contemporâneos. Apenas escrevo estas linhas para expor minha caligrafia nesse contexto desconexo, nessa geografia árida, e para enfatizar que tudo isto, para mim, é antes de mais nada irracional, ou seja, anulado de fundamentos. Para mim todos nós somos integrantes de um grande circo onde coadjuvantes e protagonistas não passam de uma trupe de palhaços estúpidos, servindo de motivo de gargalhadas para alguma platéia cósmica, indivisível à demência dos nossos olhos embriagados.