segunda-feira, 20 de novembro de 2006

Pelo Mínimo

O fato de o Brasil ter sido colonizado da forma violenta como foi, com o extermínio de milhões de indígenas e a espoliação de outros milhões de africanos, conjugado com a tenaz catequização promovida pela igreja católica, não poderia resultar em uma consciência pior do que a nossa, que consegue, em nome do pós-morte, se sujeitar as piores condições de vida, com capacidade de se conformar a partir de parâmetros cada vez mais exíguos.
As religiões, por si mesmas, já conseguem deformar qualquer povo, mesmo sem a colaboração de qualquer outro fator, fato comprovado em todo mundo, embora, estranhamente, ainda pouco questionado.
No Brasil, no entanto, a intervenção da igreja contou também com alguns fatores externos que contribuiram ainda mais para a submissão do nosso povo aos opressores, sobretudo, por não reconhecermos esses opressores como tais, salvo em estudos de alguns intelectuais, que não representam o pensamento da maioria. O mais influente desses fatores foi o pensamento senhorial, que, unido ao conformismo pregado pelos sacerdotes e ao modo como os mesmos punham o índio e o negro em condições inumanas, principalmente se se não sujeitassem aos princípios cristãos, fez da nossa civilização uma pátria de tementes e subjugados.
O povo brasileiro é incapaz de associar a penúria em que vive com o passado atroz que formou sua condição e proporcionou suas necessidades, onde senhores e padres, estrangeiros, invasores, se apropriaram de tudo o que estava ao alcance de suas vistas e subjulgaram os demais aos seus caprichos, sem conceder-lhes sequer o mais ínfimo dos privilégios. Isso prosperou e se estende aos dias atuais, num cordão flagrante, mas que, mesmo assim, não pode ser visto pelos olhos dos brasileiros, não apenas pela ignorância em que o mesmo é mantido, mas, sobretudo, pelo modo pobre como nos submetemos aos "desígnios do Senhor", que é ao que atribuimos toda desolação que nos rodeia e oprime.
É comum ouvirmos as pessoas dizerem que não podem reclamar da vida, desgraçada, que levam, por haverem milhares de outros suportando realidades muito mais terríveis. Ou seja, agradecem a vida que levam, não por atingirem uma condição minimamente digna, mas por não figurarem entre os esfarrapados que rastejam de fome. E que podem continuar ratejando, desde que os não aporrinhem. Estes, aliás, são vistos como culpados da penúria em que estão afundados, tal é o grau de míopia que nos aliena.
Nossa comparação com um modo de vida ideal, é feita a partir do patamar da miséria, não, como seria de se esperar, a partir de um critério minímo de decência, o que, no inconsciente coletivo, soaria como sendo uma ingratidão, já que Deus, ou antes, a igreja, nos inspira a nos ajoelhar diante do caos, ao invés de levantarmos contra ele.
O interessante disso, é que as situações sempre poderiam estar piores do que estão, ou seja, sempre a o que agradecer, já que, por mais desumano que seja o fardo que temos de suportar, ele poderia ser ainda mais pesado. Como geralmente se torna. Isso facilita o discurso colonizador, que prevalece ainda sobre todos os demais discursos e prejudica absurdamente qualquer intenção de equalizar de maneira mais digna o inacreditável gráfico de desigualdade que insiste em se manter, onde uma minoria goza de todos os privilégios materiais, enquanto uma imensidão de miseráveis os assiste e ampara, já que trabalha para sustentá-los e mantê-los em seus tronos indestrutíveis.
Ouve-se com incomoda freqüência, também, as pessoas dizerem que o dinheiro não trás felicidade, o que faria certo sentido se a maioria da população tivesse um mínimo aceitável de acesso aos bens de consumo, que lhes proporcionasse certo conforto, no entanto não faz sentido algum, quando a infelicidade do rico consiste em frustrar-se em suas relações pessoais, ou ser acometido por alguma doença, ou vitimado por algum acidente. Nada além. Enquanto a infelicidade do pobre, além de todas as que se referem aos ricos, também é a de ter de se submeter a ser ferramenta de trabalho dos patrões; a não ter condições de se vestir e calçar dignamente; a não morar adequadamente; a não poder se alimentar com decência; a não conseguir quitar suas dívidas, ou viver sem contrai-las; a não poder estudar nem ter acesso a uma saúde razoável; a não poder garantir nada aos filhos; a não ter direito ao lazer... E a tudo o mais que dessas carências se desencadeia.

Somos um povo extremamente violento, sobretudo por não nos reconhecermos como tal, o que reduz nossa fúria ao caos cotidiano, não em nome de qualquer causa que nos emancipasse, mas em nome de uma frustração individual, que nos move a agredirmos nossos vizinhos, nossas mulheres, nossos filhos. É uma forma distorcida de gritarmos o grito sufocado nas nossas vísceras, que, na verdade, se endereça aos que nos massacram, mas que, não sendo capazes de compreender isso, o soltamos contra qualquer um que esteja próximo, mesmo que os motivos sejam injustificáveis.
O triste disso tudo é que não é possível que se construa uma consciência razoávelmente comprometida com seu progresso conjunto, sem que, antes, se destruam as bases sobre onde está formado o pensamento atual, que é o que rege nosso comportamento, ou seja, dificilmente saíremos da condição em que nos encontramos, sem que se desencadeie uma luta, cujos conflitos de interesses produzam resultados extremamente violentos. Já que uma mudança gradual demandaria um tempo que, provavelmente, não suportaremos esperar.

sábado, 14 de outubro de 2006

Mãos

Meu olhar debruça-se sobre o asfalto, desenrolando-se como um imenso tapete,
Deslizando por estas esquinas melancólicas
E contemplando mundos que se distanciam.

Embora minha impaciência (e minha infância) relute aceitar qualquer manifestação mais branda
Que deixe de contestar
E por extensão ameaçar
Os silenciosos passos da eternidade,
Que monotonamente se desentranham, se estendem e se dissolvem,
À frente de qualquer razão e de qualquer descanso.

E mesmo nestes embates comuns,
Dado que freqüentemente meu desespero e meus conceitos testam seus argumentos em
minha ansiedade,
Minhas mãos trêmulas teimam em brotar pelos cantos da minha boca
Uns que outros laivos comprometedores de esperança e de desprezo.

E meu olhar depois de se fatigar com a quantidade de desolação que desfila a sua frente,
E de não mais suportar as débeis convicções que
Continuamente
Desmoronam-se em seu interior,
Projeta-se novamente pra fora da órbita atônita de que é constituído
Simulando vôos alheios
- Ao longo dessa cidade estranha
E sem provas reais de que exista realmente,
Afora nos mapas,
O que não prova nada,
E em alguns corações tão frios e flácidos que sequer devem ser levados em conta.

E nestes supostos vôos mergulho em mentiras úmidas
- Ou que não me pertencem,
Chegando a dar a mim mesmo a vaga idéia de que vivo realmente.
Não de que apenas simulo impressões descabidas respondendo a estímulos ilusórios.
Impressão semelhante a que ocorre quando,
Ao reencontrarmos alguém do qual gostávamos bastante
E que há tempos não víamos,
Somos acolhidos por uma recepção calorosa.
Algo que sugira a recordação daquela referência singular e afastada,
Que éramos nós mesmos,
No passado referente ao caso...

Mentiras tão reais quanto qualquer verdade,
que me vestem asas preguiçosas
Elevando minha condição para dignidades impossíveis.

Ainda que me depare com cenários cemitérios,
Povoados de espectros corroídos,
Que mais me lembram do tempo em já que estarei morto.

Mesmo quando passo por uma cidade que exerce plenamente suas faculdades organizacionais.
Uma cidade como qualquer cidade,
Entranhada de pessoas que vêm e vão por todos os lados e de todas as formas,
Com os mais insignes e circunspectos trejeitos
E os mais variados modos de deixarem-se ver.

Vejo trupes de pessoas abandonadas confundidas com minha incompreensão,
Serem observadas pela álgebra das estatísticas balançarem-se como pêndulos
Entre os sonhos possíveis de uma juventude convicta e infalível,
que as abandona,
E a desilusão fantasmagórica de um tempo incansável
Que se amontoa sobre seus ombros secos.

Percebo suas mãos esquivas.
Mãos que já desbravaram selvas de espinhos,
Cujos dedos já apontaram, seguros, a direção de horizontes esverdeados
Carregarem agora nos gestos vestígios endurecidos de rebeldias adiadas.
Munidas de pastas, telefones, armas - como dantes, bandeiras.

Como se a vida não fosse mais que uma véspera.
Como se o corpo não fosse, senão, mais um fardo.

Mãos enegrecidas, que outrora rascunharam auroras imensas
Assumindo agora o aspecto anêmico de promessas amanhecidas.

terça-feira, 10 de outubro de 2006

Blecaute

Cidade deserta.
Nas ruas um matiz de abandono adornando edifícios pardos.

Percorremos as ruas, você e eu, tomados de uma euforia ébria.
Quase insuportável.
- Como se voássemos sobre montanhas.
Como se fossemos de nuvem.

Nossas mãos seguram-se com receio de se perderem,
Porque a cidade está deserta
E isso só nos importaria se estivéssemos distantes.

Sentamo-nos no meio da rua e tomamos cervejas e vinhos.
Nos deitamos e nos amamos no meio da rua, no asfalto, como dois dementes.
Gritamos como pássaros,
Chutamos o lixo,
Arrombamos as lojas.
Vestimos todas as roupas,
Todas as perucas, todas as cores
E nos abraçamos e decidimos fazer uma festa.
E nos convidamos e nos aguardamos – ansiosos,
Para finalmente chegarmos, nos entreolharmos
E nos olharmos
Como os príncipes e as princesas dos contos
Depois de intensas agonias,
Quando se encontram, finalmente, num dos capítulos.

Nos admiramos,
Nos apresentamos nos estudamos
Nos defendemos e nos atacamos.
Nos pretendemos
Nos prometemos
E nos juramos.
Nos abraçamos
E nos beijamos desesperados
- Dançando uma valsa invisível.

Olhamo-nos como se estivéssemos sonhando
E soubéssemos estar sonhando
E aproveitássemos o tempo previsivelmente restrito.

E nos beijamos ao meio-dia no centro da cidade.
Pego você no colo no centro da cidade ao meio-dia,
Mas ninguém repara, porque não há ninguém
Nem precisa haver, porque você está comigo.

Todas as casas do mundo são nossas,
Todas as chuvas do mundo
E também todas as noites.

Entramos nas igrejas com a solenidade austera dos monges,
Para logo em seguida louvarmos ao Senhor em ritmo de carnaval.

Você se despe no altar e nós então nos casamos
E multiplicamos nossos pecados sob a pupila escandalizada da Santa-Madre.

E eu a contemplo em suas mais diferentes faces
Vendo-a simples, impecável,
Frágil e invencível.
Linda como uma colina.

Dormimos ao pôr do sol
Pra acordarmos em plena madrugada
E da madrugada irmos de mãos dadas
Até a alvorada,
Porque a vida era uma rua de esmeraldas
Que nos conduzia por estrelas de safira.

quarta-feira, 13 de setembro de 2006

mundo e mundo

o planeta terra não é o mais indicado lugar para se morar. no entanto, diferentemente do pequeno príncipe, não podemos ir para outros lugares. se pudessemos, porém, não seria indicado fazê-lo em grupos, pois só mudariamos o endereço do caos. e se fossemos sozinhos, ficariamos perto demais de nós mesmo, o que talvez seja pior ainda.
o bicho que mora no ventre do homem é sinistro e engraçado e a vida é um fenômeno cujo sentido, se analisarmos com frieza, não chega a convencer nem ao mais conformado campones, a permanecer obstinado em sua jornada carnal. aliás a carne é um dos principais empecilhos que enfrentamos enquanto vivos e eu fico imaginando se no mundo das almas, considerando que as almas perambulem pelaí, não existem organizações religiosas que rezam pelo desapego espiritual em troca de uma "vida" de prazeres quando nascerem.
a capacidade de rir é que torna o ser humano uma criatura ímpar. essa caracteristica deu a ele a capacidade de se tornar o mais sentimental e o mais perverso dos habitantes terrestres...
continuo isso depois

domingo, 10 de setembro de 2006

Jan Van Eyck



Este é o quadro "O Casal Arnolfini", de Van Eyck, pintado lá pelos idos de 1400 e tantos. Impressionante pela riqueza e precisão dos detalhes, que aliás é marca do autor.
O interessante é que Van Eyck desprezava a geometria quando traçava suas perspectivas, o que dá uma sensação um tanto desconfortável na contemplação dos seus quadros.
Observem a cama d´O Casal Arnolfini. É torta, como se o piso fosse deitado.
Por outro lado observem o lustre. É impecável, mesmo exigindo um trabalho de sombras e sobreposições dos braços muito mais complexo que a perspectiva da cama.

Nesse quadro Van Eyck brincou também com o espectador, pois pintou a si dentro do "espelhinho", segurando a aquerela, e ainda escreveu na "parede" da sala: Van Eick esteve aqui em 1400 e alguma coisa (acho que é 72)...
É bonito prestar atenção também na felicidade do casal, que é monótona, fria, ou simplesmente triste.

quarta-feira, 30 de agosto de 2006

No desleixo da Mesa

No desleixo da mesa tem rascunho de poesia,
tem esperança amassada,
cicatriz de alma fraturada,
um pedaço de bom-bril.

Tem batucada de samba.
Saudade, muita saudade.
Tem alguém que foi embora,
tem hora jogada fora,
copo de vinho vazio.

Calculadora,
um relógio que não pulsa mais,
os ratos do Dyonélio...

Quanta bagunça.
Nem vejo mais uma mesa.

Vejo silêncio e tristeza
esmagando um coração.

terça-feira, 8 de agosto de 2006

Chagall



A pintura de Chagall é interessante porque é irresponsável. A consciência que o autor tinha de seus domínios artísticos era tamanha que não se importou em agradar a estética com traços bem definidos, toques precisos e, mesmo, belos desenhos.
Pintou algumas badernas, alguns tumultos e colocou uma atmosfera de sonho em torno de tudo que se tornou sua marca. Os volumes, as desproporções, os absurdos fazem parte do universo de seus desenhos e se tornam belos e mais belos a medida em que os olhamos. Existem artistas que se esforçam por ser diferentes e outros que encontram formas de expressão avessas as até então conhecidas. Avessas a ponto de serem contrárias a tudo. Chagall é um desses tais cuja visão se deformou por si mesma. Parece que seu estilo não é produto de buscas como a maioria dos artistas e sim de desencontros. Como se ele apenas passasse pela arte caminhando e nela tropeçasse, num momento em que a mesma estivesse desprevenida.
Então a pintava.

segunda-feira, 7 de agosto de 2006

Terminal

No terminal as pessoas se confundem.
Não existem,
ou não lembram-se
terminais.
Homens e mulheres esperam o ônibus, crianças.
Como se o terminal se suspendesse em um cotidiano paralelo,
entre o ônibus em que se vem
e o em que se vai,
e servisse apenas para intermediar de nossos malabarismos,
nossos bares;
de nossas pressas,
as preces.

Os olhares debatem-se no terminal.
Alguns tremulam como o crepúsculo e caem como a noite
e quebram como as estrelas. Estalam!
Outros brilham como um sol branco
ou uma lua desesperada.
Outros ardem e umedecem.
Outros, ainda,
arranham as paredes na poeira da retina.

E as pessoas sequer vagam, sequer doem...

Algumas, apenas,
arbustam-se em pensamentos rotos:
certezas impossíveis,
lógicas improváveis,
eternidades provisórias.

Arrastam-se pelas ruínas de mais uma última esperança, que perseguem.
Atacam os próprios temores,
estimulam-se,
provocam-se
- se distraem.

Mas quando chega o ônibus o que sobe é apenas a pessoa
e tudo o que funcionou nos sonhos fica no terminal
para que outros, se assim o desejarem,
também possam se servir.

Pessoa é criatura que tem peso e tamanho exatos
- que não se insuporta.

Muitas pessoas conversam nos terminais.
Sobre aquele dia, sobre hoje,
sobre tudo
- sobretudo, amanhã.

Penduradas no cérebro,
balançam-se como pêndulos
embaladas por idéias de ninar.

... os ônibus vêm,
descarregando e carregando sua mercadoria,
até que quase só carregam
e o terminal fica deserto.

O terminal deserto me vasta!

Muda-se pra uma cidade antiga
num agora longe.

Despertando saudade de coisas as quais jamais esquecerei.
Ou vi.

Joan Miró



Noite

A surrealidade do Miró é a única que é só dele e que todos ficam com inveja de não ter uma igual.
Outras surrealidades são comuns nos delírios gerais. Inda que não as passemos à tela.
Miró produziu uma surrealidade elaborada nas impressões que teve na infância, com a diferrença que as imagens foram preservadas no seu estado de inocência. E ele arquivou aquela desordem num arquivo do cérebro pra depois pegar de volta quando a pudesse traduzir e despejar na tela em forma de loucura.

domingo, 6 de agosto de 2006

Florboletas

Borboletas são flores que voam.
Entre flores.

Flores sendo,
como se fossem as borboletas
que são.

Flores
são borboletas que descansam.
Entre borboletas.

Flores que são,
como se borboletas as fossem.

sábado, 5 de agosto de 2006

Corrupção

Não combino com refinamentos, delicadezas
Sofisticações ou elegâncias.

As formas cruas
Os modos grosseiros me sustentam.

Alimento-me de preguiças, despedaços, impurezas,
Pecados, venenos,
Fomes.

As corrosões e suas inconseqüentes ruínas
Forjam-me ainda mais inacabado do que sou.

E quero viver o mais inacabado possível,
Pra morrer mais inacabado ainda
E me dispersar pelas minhas incompreensões.

No inacabar abro as possibilidades de devastação
Que procuro na alma e na palavra.

Quero incapacitar meu cérebro para quaisquer talentos
E aprimorá-lo nos defeitos.
Quero explorá-lo,
Perder-me nos seus corredores,
Percorrer suas asperezas
Suas estreitezas, seus acidentes, seus porões,
E navegar em suas ilimitações.

Em meio às mais densas neblinas
E aos mais turbulentos vendavais
Vou acordar sintomas desconexos:
Sustos fuliginosos, deslumbramentos úmidos, flores vagas
Delírios mancos, pássaros entristecidos, síndromes anêmicas,
Incandescências vacilantes, lágrimas opacas, traumas trêmulos, vôos pardos

...

Nos labirintos de meu cérebro
Quero assistir os conflitos deflagrarem-se,
Colidirem-se
E entrarem em curto
Para fundição de novas eternidades.

Das matérias mais turvas
Extrairei ácidos escaldantes,
Dos quais aproveitarei apenas a insensatez,
Para usar na conjugação de novos evangelhos.

- Porque o homem só exerce sua condição racional
Se se tornar uma toupeira de seu cérebro
E escavar as próprias idéias com voracidade.

- Porque o homem é seu único Deus
E sua cabeça é o grande mar
Onde promover gigantescas ondas
E grandes rebentações.

Porque Deus não existe
E é preciso corporificar o amor!

Precisamos sacudir nossas sombras a todo momento;
Atormentar nossas vistas;
Imaginar o que as novas descobertas devastam na gente;
E inventarmos sóis que ilustrem nossos novos escombros.

Precisamos continuamente despir a decência
- Depravá-la,

Para que possamos valer a pena.

Hoje consigo pensar que vale a pena ser
Eu
- Que começo a valer a pena.

Depois de todas as primaveras
Terem escapado pelos vãos dos dentes.

Começam a me atrair as fachadas,
As intoxicações, os amontoamentos, as ferragens, as ferrugens.
Os abandonos.

Começam a me distrair as interferências
Decorrentes da banalidade e do cotidiano.

Abrigo no pensamento corpos que não me pertencem
E procuro interpretar seus absurdos.
Depois de ouvir os aplausos frenéticos da platéia
Bêbada
Liberto-as aos próprios uivos.
Mas elas me perseguem. Arrastando-se descabeladas e revoltosas,
Com a maquiagem a lhes escorrer pelas caras,
Reivindicando novos papéis
- Como fantasmas ancestrais caducos a reclamarem os antigos corpos.

Falo através de palavras que não são minhas
Sonhos que também não me pertencem.

Na verdade busco falar,
Porque na verdade estou aprendendo a falar,
Porque na verdade estou aprendendo a andar
Somente agora,
Com 59 anos de idade.
Estou aprendendo a nascer, a ser.
Aprendendo a desconstruir.

Quero usar minhas palavras pra incompreender ainda mais.
Pra incompreender tudo.
Absolutamente.
Que é pra ver se vejo as coisas com pura
Indecência.

Quero usar minha voz pra esquecer,
Sobretudo esquecer de falar
E de como se fala.
Que é pra ver se vejo as coisas
Com ainda mais
Indecência

Que é pra aprender a somente
Gritar.

Gritar
Sem nenhuma letra.

Gritar trapos,
Sonâmbulos,
Taperas.

Gritar que nem o homem das pedras
Gritou
Logo que começou a dominar o fogo.

Gritar como quem está no topo da mais alta das montanhas
E quer desabar uma avalanche que acabe com o mundo inteiro.

Gritar até ensurdecer,
Até apagar o passado.

Em todos os desacordes,
Com toda deficiência,
Com toda impaciência,

Gritar.

sexta-feira, 4 de agosto de 2006

tergiversações

preciso escrever alguma coisa instantanea nesse blog.
ateh pq os blogs acho q servem mais pra isso.
na verdade ñ sei o q escrever.
esporte, política, literatura.
ñ sei falar sobre nada. sei falar mal d religião.
mas ñ quero fazer isso aqui.
soh penso q se alguém quer se esconder d deus eh soh entrar em uma igreja.
mas deus existe???
a resposta certa eh ñ sei.
ou tomara. ou ainda: se deus quiser.
o "ñ sei" eh a resposta mais honesta e razoável. o tomara eh um pouco incomodo, jah q vale somente para o caso d ele intervir em nossa vida depois da morte, ou intervir na nossa morte, depois da vida, enfim.
vale somente p depois do futuro.
tudo pq antes da morte, estah comprovado, deus ñ tem lah mto cuidado.
e acho q nem deveria mesmo, jah q nos fez livres.
dizem por ai: melhor ver isso do q ñ ver.
vale tb: melhor viver isso do q ñ viver! mas serah?
p alguns sim, p outros ñ, o caso eh q ñ existe nem vai exixtir um concenso acerca dos maleficios q a vida causa aos... vivos.
eh uma especie d doença. tem q tomar remedio todo dia. o mais importante eh o q mantem o corpo capaz d manter seu equilibrio: a comida!
precisamos comer ao menos duas vezes por dia, senão a doença progride. a fome nos corroi, devora. come. qta ironia!
depois d comermos, isso p os q comem os elementos ou alimentos necessarios, vem a necessidade d dar um sentido a vida, um rumo, um norte, um horizonte...
daih o sujeito começa a observar como a vida se processa em redor pra poder tirar algumas conclusoes a respeito dos ideias modos d se comportar frente aos demais irmaos.
eh um espetaculo sinistro.
carnificinas, carnavais, pancadaria, bombas, e por aih a fora.
fica dificil depender dos beneficios alheios p dar um rumo p vida, entao partimos p o egoismo e dentro dele buscamos alguns confortos q nos acalmem.
mas o espetaculo eh sinistro pq???
ñ seria pq o homem pegou o primata e tentou fazer dele uma criatura cheia d modos esquisitos???
inventaram q ñ podemos agredir os outros, q ñ podemos matar, nem humilhar, nem nenhuma das outras coisas q o animal homem tanto adora fazer, coisas p as quais manifesta tanta vocação.
os filosofos pegaram a pensar e formularam um homem estranho, onde os q obedecem as ditas condutas adequadas sao escorraçados pelos q p/ c elas ñ dedica nem a sombra das suas preocupaçoes.
deveriamos ter sido deixados como somos.
bichos.
deveriamos ter sido deixados feito bichos, pq assim seriamos bichos contra bichos, ñ idiotas contra bichos.
as criancinhas boas, q aprender a amar seus semelhantes tornam-se estupidas e medrosas.
as outras tornam-se ousadas e capazes. pq o bicho homem embutido no ventre da criatura humana manifesta mais levremente nelas seus potenciais hediondos.
matar p os q possuem o poder eh natural.
o valor da vida eh proporcional ao lucro q essa vida pode lhe dar.
essa lei vai a margem das falsas leis estabelecidas pela filosofia e pela religiao (q eh uma forma velada d filosofia, feita por bichos lucidos, q querem manter seus tronos).
... depois continuo isso. ou ñ.

Intimidade

Um luxuoso abismo ostenta silêncio solidão e sombra

No fundo
estrelas apagadas
mergulham em aparência de pedras
falsas

A escuridão procria um monte de bicho novo
Ou apenas triste

Urros brotam pânico das cruas paredes da garganta
torturando demônios redimidos
- ventos afiados arrepiam o silêncio morno da sombra tensa

Uma explosão percorre lenta o longo corredor
tornando difícil se ver o pedaço de qualquer coisa no meio da claridade toda

Um fantasma bêbado
ao atravessar o abismo sem olhar pros lados
foi atropelado por um javali
Acordou mergulhado em sangue
dentro de uma poesia

O abandono mata alguém de solidão no silêncio de alguma escuridão

Tão completamente inexistente como quem ainda nem nasceu
morto

Um santo circula por becos suspeitos
Tem um revólver na mão
Seu anjo da guarda cutuca o ar pra ver se desafoga o olho

Nevoeiros pairam eternos

quinta-feira, 3 de agosto de 2006

Vida

A vida tem uma série de momentos bons e alegres.
Mas tem também
Me matado demais ultimamente.

Talvez eu tenha me suicidado demais,
Visto e ouvido demais,
Demais trincado entre dentes esses dias desiguais.

Mas enquanto o desespero não parar de me resistir,
Vou caindo
E levantando e seguindo...

Vida
Que passa por mim como um sopro,
Passa por mim como uma noite,
Como um rio,
Um amontoado de perdas
- Insubstituíveis e inseparáveis perdas.
Que passa deixando seqüelas eternas.

Vou procurar extrair um fim
Que justifique as intermináveis procuras que faço.

E enquanto o tempo embalar seu pêndulo
E o frio embaçar o vidro da janela
E o lobo uivar pra lua cheia e as plantas esticarem as mãos para o sol
E minha garganta embaraçar palavras reprimidas,
Vou chovendo, cantando, anoitecendo,
Aplaudindo poemas,
Chutando baldes e latas e paus de barracas.
Colhendo matérias para serem recicladas
Nalgum tormento ou nalgum hino.
E sonhando
- Porque a vida precisa de sonhos para nos suportar.
Indo de samba, de trem, de vinho
Para estações resplandecentes.
Pras oficinas do diabo...

Vida,
Eu a canto aos outros
Para reinventá-la menos amarga
Que eu,
Que às vezes penso
Que melhor seria ter nascido
Ontens muito antes
Do que o que nasci.
Ter vivido
E já ter ardido todas as dores que ainda vou sentir,
Sorrido tudo o que tenho pra sorrir,
Amado tudo o que amo e virei a amar,
Incendiado tudo o que tenho de odiar,
E que já tivesse inventado todas estas ilusões
Que sei que não vou usar.
E que já tivesse escrito,
Ou desistido de escrever
Todos estes poemas despropositados.

Melhor seria que eu já tivesse exercido
Meu direito de vir e de ir
Em guerra e em paz
E que já estivesse em corrosão,
Esquecido de todos os que tanto me chatearam
Com suas existências urgentes e fascinantes,
Que minha impaciência não conseguira afugentar.

Melhor seria já estar fora dessa máscara,
E já ter
Fugido
Desses aluguéis
Desses empregos desses desempregos
Desses salários
Desses impostos
Desse direito de permanecer calado
Desses SPC´s e Serasas
Desses 11s de setembro
- Pessoais e intransferíveis
Desse teatro dessa Palestina.

Melhor seria que eu já tivesse
Gasto essa carne combalida pelo pavor,
E que já tivesse cansado
De me postar diante dessas portas fechadas
De barba feita, bem penteado,
Estômago vazio.
Em busca de uma forca.
Acotovelado, espremido, jogado.

Melhor seria que eu já tivesse obedecido a todas essas regras estúpidas
E me curvado a uma dessas igrejas promiscuas
E aceitado a glória tola dos felizes.
Melhor seria que eu já tivesse praticado todos os meus remorsos
E que com eles já estivesse sepultado
Longe da doença de ser uma criatura perdida
Longe da bondade barata
Longe do agudo acorde dessa dor ensurdecedora
Que derrete o sorriso de qualquer bronze.

Melhor seria que eu já tivesse desistido.

terça-feira, 1 de agosto de 2006

Precezinha À Menina dos Olhos da Menina dos Olhos Verdes

para Elódia

Menina dos olhos da menina dos olhos verdes,
Faça com que os olhos da menina dos olhos verdes
Vejam nesse mundo apenas o que nele se possa ver de mais alegre.

Faça com que os olhos da menina dos olhos verdes
Contemplem a sutileza com que a aurora se desprende dos pássaros
E frouxamente se evapora ao descruzarem-se os primeiros raios do sol

Faça com que os olhos da menina dos olhos verdes
Assistam o sopro tépido da madrugada tocando as teias da alvorada
E a neblina erguer suas palmas à brisa e se dispersar extraviada pela luz

Faça com que os olhos da menina dos olhos verdes
Observem a beleza pálida da fria e monótona tarde de outono,
Que melancolicamente desmaia, revestida de sono, sonho e esquecimento

Faça com que os olhos da menina dos olhos verdes
Descubram que as borboletas nascem das flores, e observem,
Tão logo amanheça, as débeis asinhas desprendendo-se das pétalas

Faça com que os olhos da menina dos olhos verdes
Acompanhem a coreografia desorientada e majestosa dos ventos,
Pouco antes de as nuvens desabotoarem as primeiras gotas de chuva

Faça com que os olhos da menina dos olhos verdes
Comovam-se ao verem a noite escorrer dentre as frestas do silêncio
E se estender pela amplidão do firmamento, até a goela bocejante da madrugada

Faça com que os olhos da menina dos olhos verdes
Admirem o brilho fósforo na retina acrílica das estrelas,
Como se fosse a única noite em que houvesse estrelas no céu

Menina dos olhos da menina dos olhos verdes,
Faça com que os olhos da menina dos olhos verdes
Façam a menina dos olhos verdes sorrir

sábado, 29 de julho de 2006

O Crepúsculo

O céu escala de joelhos o espesso ébano do universo e, orando,
Com as palmas unidas erguidas ao nunca, suplica pela redenção dos pássaros,
Que devido ao desmazelo implacável da natureza andam a voar perdidos e esparsos,
Dissimulados dos estímulos primários que os inspiravam os prateados cantos.

Uma cólera inflamada espalha-se pelo amplo côncavo do céu,
Tornando turvo seu semblante até então imperturbavelmente anil
E dissuadindo-o com isto a manter-se submisso frente aos constantes descasos que testemunhara,
Posto que seus poderes, entre os supostos poderes existentes na terra,
Equiparam-se somente aos dos oceanos e das rosas.

Um dilúvio esfacelado despenca de nuvens sonâmbulas com ímpetos apaixonados
E o ribombar imperativo e ao mesmo tempo exausto do firmamento
Reverbera entre as civilizações em torrentes trágicas,
Afogando políticas ressacadas por outonos áridos e culturas apodrecidas por dogmas decadentes.

Sereias dedilham nas afiadas cordas vocais, faixas alternadas de silêncio, contentamento e pranto,
Tornando-se porta-vozes involuntárias de todas as mulheres que tiveram os corações congelados
Pela intensidade com que se curvaram à brutalidade dos seus homens
E pelo prazer que sentiram em sentirem-se mortas;
Suas mãos ansiosas simulam sufocamentos lentos brotando espinhos no corpo róseo das virgens
E fendas incandescentes nas suas retinas, tornando-as como que uma representação física,
- E onírica -, do abandono.

Turbilhões de gritos rubros relampejam eriçados, campeando grutas e vales,
Tão escandalosos quanto milagres.
Nos imensos cemitérios, construídos a céu aberto na pupila dos homens,
Túmulos em mármore e ruínas debatem-se e cadáveres esquálidos se esperneiam desvairados
Numa ânsia inadiável de ressurreição e recuperação de tudo o que de si fora transferido
Aos seus respectivos, ou supostos, sucessores: apartamentos, louçaria, chuvas, noites, eternidade...,
Para que assim fiquem abraçados pra sempre aos seus escombros
E não venham a correr o risco de se verem apagados da memória da criação...

E quando um caos supremo se instalara no ventre das viúvas;
Quando duendes e fadas se distraíram deixando à mostra suas faces hediondas;
E a íris do futuro, tal uma medalha incendiada,
Começou a afogar-se na goela desesperada do horizonte;
E um espanto herético arregalou-se na superfície matizada de suor do caboclo;
E a forma das cores começou a desocupar os espaços
Espargindo suas essências por esgotos caudalosos e melodias pútridas;
Quando as pétalas começaram a despir as flores dos jardins,
Esvoaçando atormentadas feito asas órfãs;
E as colinas tostaram suas cabeças infantis desorientando o vôo das borboletas;
E um milhão de maestros emergiram do seio dos mares cada qual regendo uma orquestra
própria;
Quando a insônia escorreu dos olhos dos poetas
E eles viram-se perfilados num mesmo conceito de solidão e inércia;
E uma menina soltou as mãos das de seu pai,
Jogando-se ao vento e desaparecendo no ar com um sorriso desmaiado nos lábios;

Então a natureza entendeu que havia sido descoberta.
Que suas ardilosas artimanhas não serviam mais de consolo às estrelas
E que nem o luar mais cristalino seria capaz de resgatar da fúria dos céus
Uma mínima simpatia de noiva.
A eternidade terrena agonizava
Dando espaço a um sono infinitamente mais pesado, profundo, negro e vazio.

terça-feira, 25 de julho de 2006

O Velho

Esses dias eu vi o pedaço de algo que já nasceu,
brincou
e que já teve esperanças e sonhos:
Um velho.

Já o haviam tido por gente nalgum ontem desses,
quando ainda corria o risco de ganhar algum dinheiro.
Hoje ninguém perde tempo com ele.
Caminhava apoiando-se nas paredes,
firmando no chão somente o pé que ainda tinha bom,
pois o outro se desmanchava.
Não tinha uma muleta.

Andava tão devagar que parecia que sempre admirava algo.
Mas apenas andava.

Quando chegou perto de onde eu estava, sentou-se.
Perguntei o que tinha no pé e ele mostrou.
Disse que o havia quebrado faziam doze anos e nunca mais havia sarado.
Aquilo era um inchaço preto,
um pedaço podre grudado num corpo que se dissolvia.

As palmas das mãos trêmulas do velho eram pretas também,
como se tivessem fungos.

Ele disse que tinha raiva quando o cigarro acabava de noite
e não tinha dinheiro pra comprar mais.
O som de sua voz me impressionou tanto quanto saber que ainda tinha raiva de algo
(não parecia mais haver sentimento algum dentro daqueles olhos).

Era um som de treva e sono,
um lamento, um protesto,
um gemido.
Um canto santo de sino enferrujado,
um silêncio.
Acontecia torto, áspero, seco, pálido!
como algo que já se foi
e que se foi doente.

Aquele som talvez refletisse a maneira como o velho havia sido tratado
quando ainda tinha sonhos.
Fiquei com vergonha de pensar que ainda sonhava.
O velho percebeu isto.

Ele disse que fazia frio.

Eu não tinha, ali, nada que oferecer para aquecê-lo,
nem um sorriso.
E me calei.

Ele então foi embora,
arrastando-se consigo
como uma cruz,
caminhando sem o pé
que ainda estava ali
pra doer.
Como sua vida
que também doía
sem estar ali.

sábado, 22 de julho de 2006

Ensaio Sobre a Solidão

escrito por volta de agosto de 2004 - hj ñ penso mto assim


Somos seres humanos, o que implica afirmar não sermos nem santos nem demônios, mas talvez o intermédio entre um e outro, ou ainda a soma de ambos.

Já vi comportamentos humanos manifestarem as mais soberbas vocações, vi as mais dignas intenções brotarem no seio das mais humildes almas e vi tudo isso nos mais miseráveis recantos, não precisando, porém, circular pelos salões de qualquer palácio para saber que espécie de pensamentos sombrios transitam por seus interiores. O fato é que somos seres humanos e ainda que vez por outra alguns episódios nos comovam, fazendo com que nos levantemos em solenes coreografias - dedo em riste -, reivindicando reparação para danos que não nos dizem respeito, o que buscamos mesmo é a solução para os nossos próprios dramas. Nossas intenções são traçadas a partir de interesses individuais e não em favor dos anseios alheios ou coletivos - motivos a que categoricamente aludimos e nos quais, muitas vezes, convictamente cremos. Apesar de isto não ser muito estimulante, pois aparentemente nos aproxima mais do inferno que do paraíso, não é tão cruel assim, já que alguém que porventura viesse a abrir mão de si mesmo e de seus interesses vulgares, em nome de causas as quais, entre aspas, acredita, acabaria sim, neste desapego, desapegando-se de todos os demais, tornando-se assim incapaz de alterar o que quer que fosse em seu meio. Porém, este egoísmo inato da espécie humana, somado a outros adendos, muitos deles fabricados por multinacionais, acaba por provocar nas sociedades toda casta de cisões. Cisões do eu para comigo próprio, do eu para com meus pais, irmãos, para com meus familiares, vizinhos. E dos meus vizinhos o ciclo se estende. Um bairro não quer se ver prejudicado com relação ao outro, inda que isto seja comum. Dos bairros parte-se para os municípios, os estados, as regiões, os países, os continentes e, finalmente, os hemisférios. Solteiros, casados, feios, bonitos, negros, brancos, gordos, magros, intelectuais, ignorantes, espertos, otários, jovens, velhos, doutores, operários, roqueiros, sambistas, católicos, batistas, ateus, homossexuais, heterossexuais, homens, mulheres, enfim. Guerras, múltiplas guerras travadas em sua maioria nas mais ocultas arenas, nos bastidores da convivência. Guerras indeclaradas, ainda que nos inspirem amplos e efusivos debates.

Mas a maior de todas as guerras, evidentemente, é a guerra social. Opressores e oprimidos! Esta é a maior das cisões mundiais e se não é a que inspira e desencadeia todas as demais divergências, é ao menos a que mais as estimula. É a linha horizontal que divide os povos não por fronteiras idiomáticas ou territoriais, mas sim por limitações de posse; definindo os que estão por cima e os que encontram-se por baixo na escala material. É o alimento que predispõe duas frentes, entre milhares de outras, a se digladiarem ferrenhamente, como animais peçonhentos que disputam o cadáver de um corpo que apodrece.

Enquanto esta questão, a da corrosão social, não for devidamente digerida como sendo uma guerra e não ter a dedicação que carece com relação aos governantes das principais nações, pertençam os mesmos a esfera que pertencerem, ainda que sejam resolvidos outros impasses pertinentes ao melhor convívio humano, os conflitos permanecerão no mesmo degrau, no mesmo grau de intensidade, os anseios permanecerão intactos. Principalmente o mais legítimo dos anseios imagináveis, o da liberdade.

Não venho através deste texto propor alguma saída, até porque não acredito que haja uma, principalmente pelo fato de não haver na humanidade matéria-prima suficiente para que se promova uma reversão do atual quadro de desigualdade entre os povos, para um cenário emoldurado por ambientes mais alentadores. Tão pouco pode-se importar essa matéria-prima. Não há e nem acredito que um dia haja essa mão-de-obra. Não acredito na igualdade e acho-a sem graça e sem fundamento, pra não dizer grosseira, dada a heterogeneidade inerente aos seres humanos e até a própria natureza. A mim não ocorre nenhuma proposta a fim de que se possa dissolver, estancar ou apaziguar as tantas e tamanhas aflições que nos perseguem ao longo da vida e não creio que a questão social venha algum dia a se ver em patamares menos hediondos, ou mais sóbrios.

Pode-se falar em revolução, o que seria muito poético de se imaginar, porém, é impossível dar-se curso uma revolução digna de efeitos felizes sem que para tanto o povo não esteja imbuído de modo uniforme neste intuito. E isto só seria possível por meio de um recurso indispensável, que é a educação. Mas não esta educação tecnicista e conceitual, que nos põe em salas de aula e que serve-se do sistema unicamente para sustentá-lo no governo dos nossos destinos, mas sim de um amplo estudo envolvendo basicamente o conhecimento do passado, o conhecimento criacional e incentivando o aprimoramento da criatividade humana através da arte. Para que assim pudéssemos desenvolver nossas sensibilidades de modo a despertarmos para valores que há muito permanecem adormecidos. Não acredito que isto venha a ocorrer. Contudo, não é por isto que aceito como suportável o modo perverso como estão encadeadas e estabelecidas as situações atuais, que são, sob todos os prismas, irracionais. Apenas saliento algo que considero óbvio, ou seja, que a erosão social tal como se encontra é o desastre que predispõe as sociedades aos maiores conflitos, por conseguinte às maiores tragédias e que os problemas mundiais não serão sequer tangidos caso a questão da pobreza não seja abordada como o grande tumor humano e não torne-se centro de discussões e alvo de combate entre todas as nações. Mas, repito, não creio que a vaidade e o egoísmo imperantes permitirão que seja travado este combate, acredito, aliás, que esse dilema seria, caso fosse possível dissolver os demais, o último dos enfrentamentos humanos.

Pode ser também que estes meus apontamentos estejam tão distantes do cerne das aflições humanas, quanto distantes são nossas compreensões acerca do que se passa quando nossas almas despem-se dos nossos malfadados corpos.

Contudo, o que menos compreendo, aliás, o que não compreendo, é o fato de as grandes fortunas mundiais estarem diretamente vinculadas a descoesão social. É ridículo deduzir que para que alguns poucos tenham uma vida de reis, com direito a suntuosos impérios, a maioria tenha de se ver obrigada a chafurdar nos esgotos, como porcos. Não consigo compreender porque, nem como, essa miséria toda seja responsável pela geração fortunas imensuráveis, que se amontoam nas mãos de tão poucos privilegiados. Não compreendo porque neste momento existem somas inconcebíveis acumuladas em caixas fortes, e que ali haverão de permanecer por gerações, sem o real aproveitamento de ninguém durante séculos, apenas para garantirem a consolidação e a permanência de dinastias econômicas que usam de sua influencia para apossarem-se do poder e boicotar qualquer manifestação oposta aos seus princípios e ditar as regras com relação aos corretos comportamentos a serem adotados por aqueles que jamais passarão de espectadores da vida. E no mesmo instante em que estas somas dormitam sobre o lustre sombrio dos caixas-fortes, milhares de homens transitam pelas ruas sem nenhuma chance de conquistarem sequer o mínimo para uma existência decente.

Não compreendo como e porque uma pessoa é dona de milhares de hectares de terra enquanto outras, no planeta terra, não tenham direito a um buraco onde possam passar a noite. Não entendo porque uma melhor adequação das finanças, com relação a garantir ao menos um piso menos vergonhoso aos desfavorecidos, venha a por em risco as bases econômicas mundiais.

A meu ver a miséria, construída pelas garras do capitalismo, que perverte mesmo nossas referencias mais tímidas com respeito a civilidade, constrói uma miséria abstrata muito maior e que, por ser abstrata, é muito mais complexa e aterradora, muito mais difícil de ser detectada e combatida, tornando-se, portanto, um cancro que atinge e aflige surdamente a todos os seres, não importando seu status no conceito social, nem qualquer outra diferença entre as tantas diferenças existentes entre nós. Esta que é a cisão da alma para com o corpo; a solidão. Solidão no aspecto múltiplo de suas possibilidades; solidão do amor, solidão do sexo, solidão do filho, solidão da família, já que nossos valores cada vez mais vêem-se confundidos aos nossos vícios; solidão de carne, do coração, da alma. Não há mais convivência entre as comunidades, se é que um dia isto ocorreu. Não há integração entre os povos! Todas as esferas sociais vêem-se acometidas por alguma perturbação oriunda do fato de não haver entre elas possibilidades de harmonia. Estamos apenas suportando-nos uns aos outros ao mesmo tempo em que nos desprezamos a todos. Nos agarramos à religião e à televisão como doentes abraçam-se aos remédios. Fazemos de Deus, não a libertação que sua imagem representa, mas um cárcere amaldiçoado repleto de punições. E da televisão, esta indústria da barbárie, fazemos um outro Deus, a quem devemos total subserviência uma vez que a todo momento nos esclarece a respeito de elementos indispensáveis a melhor condução de nossas vidas. Estamos nos fragmentando cada dia mais em bolhas de desespero. Tudo o que pronunciamos é produto de alguma mesquinharia, portanto dito em nome de uma farsa. Quando digo tudo, é claro que admito haverem manifestações contrárias, porém tão tímidas se mostram, que não ultrapassam sequer a qualidade do medíocre, uma vez postas ao lado do voraz apetite e do veloz avanço do pensamento financeiro, sendo portanto absolutamente ineficazes e irrelevantes.

O gosto da maioria das pessoas é ditado por dispositivos de marketing tipo outdoor´s e por outros mecanismos que se manifestam das mais diversas maneiras; ora à socapa, induzidos por meio de embustes da propaganda, ora socados garganta abaixo como se não fosse possível sobreviver sem determinado produto ou objeto. As pessoas que têm o gosto diferenciado vêem-se engessadas por várias formas de exclusão e acabam por acharem-se donas de um refinamento superior, refinamento este que as torna criaturas dignas e perspicazes. E o que se observa é a formação de diversos blocos, blocos que inda que devido a conjuntura tenham diversos aspectos positivos, vêm, em nome da união, somar ainda mais cisões sobre todas as demais já existentes. Quem está fora desses blocos, ou excluído dos grupos que se beneficiam deles, fica absolutamente desassistido. É a oficialização da barganha, no mais vergonhoso aspecto que a expressão admite. Daí a todos os nortes convergirem para o desequilíbrio. Disso mina uma carência que não tem remédio, uma tristeza produzida da ausência afetiva entre os seres, somada ao pólo central do homem que é o individualismo, já que cada um de nós vive em um planeta surpreendentemente diferente. Dessa mescla obscura redunda uma ironia, que é o fato de nosso individualismo estar diretamente atrelado ao coletivismo, sendo, portanto correlato aos nossos desejos mais egoístas uma melhor adequação social entre todas as esferas da sociedade, para aí sim, haver mais possibilidades de trânsito entre os corredores sociais, resultando em estimas menos devastadas e mais espontaneidade de expressão entre interlocutores e espectadores. Creio que teríamos mais satisfação em viver se soubéssemos que para se aspirar a uma pasta mais concorrida de uma empresa, não se fizesse necessário nenhum grande crime, e que para se sentar em uma cadeira mais elevada, fosse qual fosse a instituição, não se fizesse necessário esmagar uma multidão de desgraçados que em nada tem a ver com nossos percursos, quando não, sequer imaginam que existamos.

Mas o que se vê não é senão o contrário, o esgarçamento do quadro social desola as cidades cada dia mais e as classes indigentes, jogadas nas ruas como trapos, rastejam completamente humilhadas e desamparadas e quando amparadas, feitas por um assistencialismo pobre, que não contribui em nada para o fim de suas lastimáveis situações, quando não até a fomenta a causa que lhes serve de estimulo - nada contra as pessoas solidárias, mas muito contra as instituições.

E uma vez atirados à imunda condição de pedintes, essas criaturas predispõem-se a qualquer coisa para garantir a mísera côdea de pão, sendo obrigados a circular de mãos estendidas pelas praças, feito bichos. Homens bêbados afundados no vício, sem motivos nem inspiração para alimentar qualquer esperança de reação na vida; crianças esquálidas, que sequer compreendem o que significa pertencer a infância e que desde que nascem não conhecem sequer um instante de sossego e se vão pelas ladeiras cheias de traumas e atribulações, lutar contra um inimigo invisível e covarde demais para lhes dar uma mínima oportunidade de projetarem-se; mulheres definhadas, afastadas dos encantos inerentes à delicadeza que suas condições sugerem, suplicando ao menos uma moeda, já que estão proibidas de sonhar sequer com um lar, quem dirá com uma família...

Enquanto senhores bem sucedidos desfilam em carros importados, olhando-as do alto de suas arrogâncias e mediocridades....

A classe operária, ou seja, a que pode se dar ao luxo de ser conhecida como pobre, sujeita-se a todo tipo de malabarismos e acrobacias, acata todas as ordens sem qualquer objeção, equilibrando-se na corda bamba do sistema, apinhando-se nas periferias, ou amontoando-se em cortiços, e pouco diferem-se da condição anterior, a dos miseráveis, já que a vida não circula pelos seus olhares opacos e, inda que sorriem, demonstram um imenso desgaste nos gestos e uma tristeza profunda nas palavras, uma vez que suas inconsciências registram toda crueldade de uma caminhada que jamais sairá de um estreito e tumultuado círculo. A todo momento algum episódio os ofende e os afirma não serem mais que derrotados. E se não objetam contra esta violência, é por não terem capacidade, ousadia ou perspicácia de desafiar os donos das cartas. Isto quando, na inocência de suas almas, não assimilam pensamentos produzidos pelo sistema para domesticá-los, ou melhor, mecanizá-los, e encontrarem-se rendidos pelo equívoco apregoado pelos canais de televisão, de que existem pessoas mais competentes e capazes de angariar finanças do que outras, através de métodos absolutamente legítimos, não cabendo aos demais qualquer tipo de objeção - o que constituiria cobiça -, tampouco invejarem as merecidas e suadas conquistas dos vitoriosos. Cabe apenas sujeitarem-se aos seus caprichos, como cães.

Sendo a humilhação o principal combustível da violência, dá pra se ter uma idéia do que esse massacre produz nos alicerces da sociedade.

A classe média, quando discorda do processo a que serve e do qual se serve, encontra-se em uma encruzilhada inextrincável, e ao mesmo tempo em que quer cuspir em todas as estúpidas convenções a que tem de se adaptar e prestar contas, precisa abanar o rabo para elas, quando não pô-los entre as pernas e obedecer rigidamente as suas arbitrariedades nebulosas. Não bastasse isso enfrentam jornadas de trabalho sobre-humanas, desenvolvendo individualmente funções que outrora requereriam mais outros dois pares de braços, e se não o fizerem são instantaneamente substituídos por outros, como se fossem meras e descartáveis peças, que, devido à demanda, não devem ser posta em grande valia e cujo menor sinal de “ferrugem” já é mais que argumento para justificar suas substituições. Suas famílias desmoronam-se em aparências e ainda assim agradecem aos céus pelo fato de não estarem pintados no ameaçador e desgraçado quadro dos necessitados. E finalmente, teremos a classe burguesa e a classe rica, que acabam transitando por existências obscuras e monótonas, quase que surreais, que os obriga a murarem-se, inoxidarem-se e blindarem-se para não se verem vítimas de eventuais embaraços. E ainda que se orgulhem de suas capacidades e seus privilégios em meio à absoluta miséria circunvagante, não podem explorá-la tal como suas possibilidades permitem ou insinuam, já que têm suas articulações enrijecidas, seus horizontes cerceados pela cinzenta e avermelhada massa da violência, que encharca todas as esferas das cidades. E por mais que usem de subterfúgios como a auto-afirmação para justificarem suas superioridades, não conseguem atingir senão uma alucinação confusa daquilo que lhes foi prometido como sendo a felicidade, de modo que nem eles sabem explicar quais são as reais benesses de se pertencer a estes restritos grupos dos quais fazem parte, que são como fantasmas que quase ninguém vê, e que por mais que se esforcem para o contrário não andam senão por estreitos corredores que a escravidão da posse os relega. Tanto é assim que os livros de auto-ajuda sempre estão entre os best-sellers nas livrarias. E pobres não compram livros.

Volto a afirmar que não tenho uma solução e sequer imagino uma proposta para que sejam resolvidos os grandes dilemas envolventes dos dramas contemporâneos. Apenas escrevo estas linhas para expor minha caligrafia nesse contexto desconexo, nessa geografia árida, e para enfatizar que tudo isto, para mim, é antes de mais nada irracional, ou seja, anulado de fundamentos. Para mim todos nós somos integrantes de um grande circo onde coadjuvantes e protagonistas não passam de uma trupe de palhaços estúpidos, servindo de motivo de gargalhadas para alguma platéia cósmica, indivisível à demência dos nossos olhos embriagados.