sábado, 14 de outubro de 2006

Mãos

Meu olhar debruça-se sobre o asfalto, desenrolando-se como um imenso tapete,
Deslizando por estas esquinas melancólicas
E contemplando mundos que se distanciam.

Embora minha impaciência (e minha infância) relute aceitar qualquer manifestação mais branda
Que deixe de contestar
E por extensão ameaçar
Os silenciosos passos da eternidade,
Que monotonamente se desentranham, se estendem e se dissolvem,
À frente de qualquer razão e de qualquer descanso.

E mesmo nestes embates comuns,
Dado que freqüentemente meu desespero e meus conceitos testam seus argumentos em
minha ansiedade,
Minhas mãos trêmulas teimam em brotar pelos cantos da minha boca
Uns que outros laivos comprometedores de esperança e de desprezo.

E meu olhar depois de se fatigar com a quantidade de desolação que desfila a sua frente,
E de não mais suportar as débeis convicções que
Continuamente
Desmoronam-se em seu interior,
Projeta-se novamente pra fora da órbita atônita de que é constituído
Simulando vôos alheios
- Ao longo dessa cidade estranha
E sem provas reais de que exista realmente,
Afora nos mapas,
O que não prova nada,
E em alguns corações tão frios e flácidos que sequer devem ser levados em conta.

E nestes supostos vôos mergulho em mentiras úmidas
- Ou que não me pertencem,
Chegando a dar a mim mesmo a vaga idéia de que vivo realmente.
Não de que apenas simulo impressões descabidas respondendo a estímulos ilusórios.
Impressão semelhante a que ocorre quando,
Ao reencontrarmos alguém do qual gostávamos bastante
E que há tempos não víamos,
Somos acolhidos por uma recepção calorosa.
Algo que sugira a recordação daquela referência singular e afastada,
Que éramos nós mesmos,
No passado referente ao caso...

Mentiras tão reais quanto qualquer verdade,
que me vestem asas preguiçosas
Elevando minha condição para dignidades impossíveis.

Ainda que me depare com cenários cemitérios,
Povoados de espectros corroídos,
Que mais me lembram do tempo em já que estarei morto.

Mesmo quando passo por uma cidade que exerce plenamente suas faculdades organizacionais.
Uma cidade como qualquer cidade,
Entranhada de pessoas que vêm e vão por todos os lados e de todas as formas,
Com os mais insignes e circunspectos trejeitos
E os mais variados modos de deixarem-se ver.

Vejo trupes de pessoas abandonadas confundidas com minha incompreensão,
Serem observadas pela álgebra das estatísticas balançarem-se como pêndulos
Entre os sonhos possíveis de uma juventude convicta e infalível,
que as abandona,
E a desilusão fantasmagórica de um tempo incansável
Que se amontoa sobre seus ombros secos.

Percebo suas mãos esquivas.
Mãos que já desbravaram selvas de espinhos,
Cujos dedos já apontaram, seguros, a direção de horizontes esverdeados
Carregarem agora nos gestos vestígios endurecidos de rebeldias adiadas.
Munidas de pastas, telefones, armas - como dantes, bandeiras.

Como se a vida não fosse mais que uma véspera.
Como se o corpo não fosse, senão, mais um fardo.

Mãos enegrecidas, que outrora rascunharam auroras imensas
Assumindo agora o aspecto anêmico de promessas amanhecidas.

terça-feira, 10 de outubro de 2006

Blecaute

Cidade deserta.
Nas ruas um matiz de abandono adornando edifícios pardos.

Percorremos as ruas, você e eu, tomados de uma euforia ébria.
Quase insuportável.
- Como se voássemos sobre montanhas.
Como se fossemos de nuvem.

Nossas mãos seguram-se com receio de se perderem,
Porque a cidade está deserta
E isso só nos importaria se estivéssemos distantes.

Sentamo-nos no meio da rua e tomamos cervejas e vinhos.
Nos deitamos e nos amamos no meio da rua, no asfalto, como dois dementes.
Gritamos como pássaros,
Chutamos o lixo,
Arrombamos as lojas.
Vestimos todas as roupas,
Todas as perucas, todas as cores
E nos abraçamos e decidimos fazer uma festa.
E nos convidamos e nos aguardamos – ansiosos,
Para finalmente chegarmos, nos entreolharmos
E nos olharmos
Como os príncipes e as princesas dos contos
Depois de intensas agonias,
Quando se encontram, finalmente, num dos capítulos.

Nos admiramos,
Nos apresentamos nos estudamos
Nos defendemos e nos atacamos.
Nos pretendemos
Nos prometemos
E nos juramos.
Nos abraçamos
E nos beijamos desesperados
- Dançando uma valsa invisível.

Olhamo-nos como se estivéssemos sonhando
E soubéssemos estar sonhando
E aproveitássemos o tempo previsivelmente restrito.

E nos beijamos ao meio-dia no centro da cidade.
Pego você no colo no centro da cidade ao meio-dia,
Mas ninguém repara, porque não há ninguém
Nem precisa haver, porque você está comigo.

Todas as casas do mundo são nossas,
Todas as chuvas do mundo
E também todas as noites.

Entramos nas igrejas com a solenidade austera dos monges,
Para logo em seguida louvarmos ao Senhor em ritmo de carnaval.

Você se despe no altar e nós então nos casamos
E multiplicamos nossos pecados sob a pupila escandalizada da Santa-Madre.

E eu a contemplo em suas mais diferentes faces
Vendo-a simples, impecável,
Frágil e invencível.
Linda como uma colina.

Dormimos ao pôr do sol
Pra acordarmos em plena madrugada
E da madrugada irmos de mãos dadas
Até a alvorada,
Porque a vida era uma rua de esmeraldas
Que nos conduzia por estrelas de safira.