sábado, 5 de agosto de 2006

Corrupção

Não combino com refinamentos, delicadezas
Sofisticações ou elegâncias.

As formas cruas
Os modos grosseiros me sustentam.

Alimento-me de preguiças, despedaços, impurezas,
Pecados, venenos,
Fomes.

As corrosões e suas inconseqüentes ruínas
Forjam-me ainda mais inacabado do que sou.

E quero viver o mais inacabado possível,
Pra morrer mais inacabado ainda
E me dispersar pelas minhas incompreensões.

No inacabar abro as possibilidades de devastação
Que procuro na alma e na palavra.

Quero incapacitar meu cérebro para quaisquer talentos
E aprimorá-lo nos defeitos.
Quero explorá-lo,
Perder-me nos seus corredores,
Percorrer suas asperezas
Suas estreitezas, seus acidentes, seus porões,
E navegar em suas ilimitações.

Em meio às mais densas neblinas
E aos mais turbulentos vendavais
Vou acordar sintomas desconexos:
Sustos fuliginosos, deslumbramentos úmidos, flores vagas
Delírios mancos, pássaros entristecidos, síndromes anêmicas,
Incandescências vacilantes, lágrimas opacas, traumas trêmulos, vôos pardos

...

Nos labirintos de meu cérebro
Quero assistir os conflitos deflagrarem-se,
Colidirem-se
E entrarem em curto
Para fundição de novas eternidades.

Das matérias mais turvas
Extrairei ácidos escaldantes,
Dos quais aproveitarei apenas a insensatez,
Para usar na conjugação de novos evangelhos.

- Porque o homem só exerce sua condição racional
Se se tornar uma toupeira de seu cérebro
E escavar as próprias idéias com voracidade.

- Porque o homem é seu único Deus
E sua cabeça é o grande mar
Onde promover gigantescas ondas
E grandes rebentações.

Porque Deus não existe
E é preciso corporificar o amor!

Precisamos sacudir nossas sombras a todo momento;
Atormentar nossas vistas;
Imaginar o que as novas descobertas devastam na gente;
E inventarmos sóis que ilustrem nossos novos escombros.

Precisamos continuamente despir a decência
- Depravá-la,

Para que possamos valer a pena.

Hoje consigo pensar que vale a pena ser
Eu
- Que começo a valer a pena.

Depois de todas as primaveras
Terem escapado pelos vãos dos dentes.

Começam a me atrair as fachadas,
As intoxicações, os amontoamentos, as ferragens, as ferrugens.
Os abandonos.

Começam a me distrair as interferências
Decorrentes da banalidade e do cotidiano.

Abrigo no pensamento corpos que não me pertencem
E procuro interpretar seus absurdos.
Depois de ouvir os aplausos frenéticos da platéia
Bêbada
Liberto-as aos próprios uivos.
Mas elas me perseguem. Arrastando-se descabeladas e revoltosas,
Com a maquiagem a lhes escorrer pelas caras,
Reivindicando novos papéis
- Como fantasmas ancestrais caducos a reclamarem os antigos corpos.

Falo através de palavras que não são minhas
Sonhos que também não me pertencem.

Na verdade busco falar,
Porque na verdade estou aprendendo a falar,
Porque na verdade estou aprendendo a andar
Somente agora,
Com 59 anos de idade.
Estou aprendendo a nascer, a ser.
Aprendendo a desconstruir.

Quero usar minhas palavras pra incompreender ainda mais.
Pra incompreender tudo.
Absolutamente.
Que é pra ver se vejo as coisas com pura
Indecência.

Quero usar minha voz pra esquecer,
Sobretudo esquecer de falar
E de como se fala.
Que é pra ver se vejo as coisas
Com ainda mais
Indecência

Que é pra aprender a somente
Gritar.

Gritar
Sem nenhuma letra.

Gritar trapos,
Sonâmbulos,
Taperas.

Gritar que nem o homem das pedras
Gritou
Logo que começou a dominar o fogo.

Gritar como quem está no topo da mais alta das montanhas
E quer desabar uma avalanche que acabe com o mundo inteiro.

Gritar até ensurdecer,
Até apagar o passado.

Em todos os desacordes,
Com toda deficiência,
Com toda impaciência,

Gritar.

Um comentário:

Patricia Pirota disse...

Visceral!Aqule texto q te pega d surpresa e te dá um puta soco no estômago...
Bom...Mt bom...
Imagens fortes...
Palavras tão bem escolhidas qt escravos comprados pra dentro das casas dos senhores.Ambos mt fortes, úteis e desejáveis...
Incrível...