segunda-feira, 20 de novembro de 2006

Pelo Mínimo

O fato de o Brasil ter sido colonizado da forma violenta como foi, com o extermínio de milhões de indígenas e a espoliação de outros milhões de africanos, conjugado com a tenaz catequização promovida pela igreja católica, não poderia resultar em uma consciência pior do que a nossa, que consegue, em nome do pós-morte, se sujeitar as piores condições de vida, com capacidade de se conformar a partir de parâmetros cada vez mais exíguos.
As religiões, por si mesmas, já conseguem deformar qualquer povo, mesmo sem a colaboração de qualquer outro fator, fato comprovado em todo mundo, embora, estranhamente, ainda pouco questionado.
No Brasil, no entanto, a intervenção da igreja contou também com alguns fatores externos que contribuiram ainda mais para a submissão do nosso povo aos opressores, sobretudo, por não reconhecermos esses opressores como tais, salvo em estudos de alguns intelectuais, que não representam o pensamento da maioria. O mais influente desses fatores foi o pensamento senhorial, que, unido ao conformismo pregado pelos sacerdotes e ao modo como os mesmos punham o índio e o negro em condições inumanas, principalmente se se não sujeitassem aos princípios cristãos, fez da nossa civilização uma pátria de tementes e subjugados.
O povo brasileiro é incapaz de associar a penúria em que vive com o passado atroz que formou sua condição e proporcionou suas necessidades, onde senhores e padres, estrangeiros, invasores, se apropriaram de tudo o que estava ao alcance de suas vistas e subjulgaram os demais aos seus caprichos, sem conceder-lhes sequer o mais ínfimo dos privilégios. Isso prosperou e se estende aos dias atuais, num cordão flagrante, mas que, mesmo assim, não pode ser visto pelos olhos dos brasileiros, não apenas pela ignorância em que o mesmo é mantido, mas, sobretudo, pelo modo pobre como nos submetemos aos "desígnios do Senhor", que é ao que atribuimos toda desolação que nos rodeia e oprime.
É comum ouvirmos as pessoas dizerem que não podem reclamar da vida, desgraçada, que levam, por haverem milhares de outros suportando realidades muito mais terríveis. Ou seja, agradecem a vida que levam, não por atingirem uma condição minimamente digna, mas por não figurarem entre os esfarrapados que rastejam de fome. E que podem continuar ratejando, desde que os não aporrinhem. Estes, aliás, são vistos como culpados da penúria em que estão afundados, tal é o grau de míopia que nos aliena.
Nossa comparação com um modo de vida ideal, é feita a partir do patamar da miséria, não, como seria de se esperar, a partir de um critério minímo de decência, o que, no inconsciente coletivo, soaria como sendo uma ingratidão, já que Deus, ou antes, a igreja, nos inspira a nos ajoelhar diante do caos, ao invés de levantarmos contra ele.
O interessante disso, é que as situações sempre poderiam estar piores do que estão, ou seja, sempre a o que agradecer, já que, por mais desumano que seja o fardo que temos de suportar, ele poderia ser ainda mais pesado. Como geralmente se torna. Isso facilita o discurso colonizador, que prevalece ainda sobre todos os demais discursos e prejudica absurdamente qualquer intenção de equalizar de maneira mais digna o inacreditável gráfico de desigualdade que insiste em se manter, onde uma minoria goza de todos os privilégios materiais, enquanto uma imensidão de miseráveis os assiste e ampara, já que trabalha para sustentá-los e mantê-los em seus tronos indestrutíveis.
Ouve-se com incomoda freqüência, também, as pessoas dizerem que o dinheiro não trás felicidade, o que faria certo sentido se a maioria da população tivesse um mínimo aceitável de acesso aos bens de consumo, que lhes proporcionasse certo conforto, no entanto não faz sentido algum, quando a infelicidade do rico consiste em frustrar-se em suas relações pessoais, ou ser acometido por alguma doença, ou vitimado por algum acidente. Nada além. Enquanto a infelicidade do pobre, além de todas as que se referem aos ricos, também é a de ter de se submeter a ser ferramenta de trabalho dos patrões; a não ter condições de se vestir e calçar dignamente; a não morar adequadamente; a não poder se alimentar com decência; a não conseguir quitar suas dívidas, ou viver sem contrai-las; a não poder estudar nem ter acesso a uma saúde razoável; a não poder garantir nada aos filhos; a não ter direito ao lazer... E a tudo o mais que dessas carências se desencadeia.

Somos um povo extremamente violento, sobretudo por não nos reconhecermos como tal, o que reduz nossa fúria ao caos cotidiano, não em nome de qualquer causa que nos emancipasse, mas em nome de uma frustração individual, que nos move a agredirmos nossos vizinhos, nossas mulheres, nossos filhos. É uma forma distorcida de gritarmos o grito sufocado nas nossas vísceras, que, na verdade, se endereça aos que nos massacram, mas que, não sendo capazes de compreender isso, o soltamos contra qualquer um que esteja próximo, mesmo que os motivos sejam injustificáveis.
O triste disso tudo é que não é possível que se construa uma consciência razoávelmente comprometida com seu progresso conjunto, sem que, antes, se destruam as bases sobre onde está formado o pensamento atual, que é o que rege nosso comportamento, ou seja, dificilmente saíremos da condição em que nos encontramos, sem que se desencadeie uma luta, cujos conflitos de interesses produzam resultados extremamente violentos. Já que uma mudança gradual demandaria um tempo que, provavelmente, não suportaremos esperar.

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